sábado, 5 de junho de 2010

Entre mar e céu: a fluidez libertadora da palavra líquida em Outros Silêncios de José Geraldo Neres, por Ricardo Riso





Reconfigurar os sentidos anestesiados pelo desarranjo da caótica vivência urbana, ampliando as ressonâncias do verbo poético, libertador por excelência, em um inimaginável furor semântico a desbravar novos caminhos para a linguagem, pois como versa o sujeito lírico: “A vida já sabemos sem sentido” (p. 153) diante da efemeridade de uma época na qual temos os “heróis com prazo de validade” (p. 105). 


Quando os sentidos da palavra parecem desgastados, dilacerados pelas incongruências da contemporaneidade, caberia aos poetas ressignificá-los? Em seu livro “Outros Silêncios” (Escrituras, 2009), José Geraldo Neres cumpre com louvor essa missão em uma depurada escrita, posto que “somos a tentativa de decifrar símbolos, símbolos além dos símbolos” (p. 153), e recorre a Octávio Paz: “O poeta não é o que nomeia as coisas, mas o que dissolve seus nomes” (p. 155).


O poeta busca a “linguagem da inconsequência, alegoria / que nunca chega ao fim” (p. 153), como as imagens insólitas e libertadoras dos simbolistas e surrealistas; a loucura poética a remeter Pessoa e outros nomes fundamentais como Charles Baudelaire, William Blake, Walt Whitmann, Murilo Mendes, Mário Quintana, Garcia-Lorca e a marginais como Claudio Willer e Roberto Piva. O relacionamento com o onírico e com procedimentos consagrados pelos surrealistas, como o automatismo psíquico, encontram insólitas e surpreendentes imagens, “sombras se agitam / a uivar para as nuvens de martelos assustados” (p. 32), no qual o tempo apresenta um outro ritmo marcado pela “mão sonâmbula” (p. 111), “o ponteiro dos minutos custa a se mover”, refeito pelo sujeito lírico que afirma: “perdi a confiança nos relógios” (p. 133) e segue o seu próprio tempo, “o relógio sou eu & me transformo em procissão infinita” (p. 144). 


Na escrita por vezes corrosiva do poeta, “palavras invertidas temperam a fome” (p. 136) e “ela me ensina que escrever é deixar cicatrizes” (p. 127), enquanto “um poema desce / torna-se mais pesado que um punhal” (p. 136) e “a poesia transborda no dorso do enigma” (p. 142), segredos de um tempo anterior à palavra primordial, espelho retorcido que se revela nesses outros silêncios: “os segredos quebram o espelho & retiram seus olhos líquidos / desnudam a chuva para sentir a sua pele / esse rio subterrâneo a devorar o tempo anterior a palavra” (p. 123).


Mister dizer que as motivadoras imagens consagram o apuro estético recheado de metáforas sinestésicas desses “Outros Silêncios” propostos por José Geraldo Neres que se escutam em nossos olhos. O intenso uso criativo de elementos da natureza como o ar, “as árvores cantam / levam meu corpo / suas raízes criaram asas” (p. 20), e principalmente a aguá, a navegar por outras margens, ou melhor, como versa o sujeito lírico, “espero um navio líquido” (p. 20), que “revela o segredo do abismo” dessa “água de fala adormecida / onde se encontra o eco da sua voz” (p. 23) de “um rio sem margens” (p. 20). Rio da utopia do Verbo transformador de um sujeito lírico que se afirma como “o corpo do menino / que desafia o sol / e entra no bosque escuro com as naves do verbo” (p. 50), revelador de novos sentidos “na linguagem da água” (p. 24).

“Outros Silêncios” de José Geraldo Neres apresenta-se como uma necessária oxigenação líquida para o panorama poético brasileiro.







Graduando em Letras. Integrante do conselho editorial e assina a seção de crítica literária da revista acadêmica África e Africanidades - http://www.africaeafricanidades.com. Resenhista do semanário cabo-verdiano A Nação.

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